terça-feira, abril 24, 2007

Cão-Guia para Indeficientes Visuais

- TÁXI!

Meu pai gritou acenando. O motorista do amarelo cruzou a pista do meio direto para a faixa da direita, irritando os carros que fechou no caminho, mas não o suficiente para fazê-los buzinar em revolta. Centro da cidade, 4:30 da tarde. Não exatamente na hora do rush, mas perto o suficiente.

Instintivamente respeitando a hierarquia, cedi o lugar do carona para a minha figura paterna, reservando para mim o banco de trás, como todo bom filho educado. Adentramos o veículo, movi-me para o meio para ter uma visão panorâmica do pára-brisa, adornada pelas duas figuras viradas de costas para mim: a do meu pai e a do taxista. O mundo visto do banco de trás é bem diferente do visto do banco da frente. É estar imerso num lugar e ao mesmo tempo não estar. Participar de uma conversa requer mais esforço do que o normal, e caso você deseje se abstrair e ficar calado, normalmente ninguém liga. Afinal, estão de costas para você.

- Para onde, meu chefe?

Meu pai ditou o destino e partimos sem demora. Divaguei um pouco pelas janelas laterais, observando as calçadas engarrafadas do centro que imitava o fluxo do trânsito dos veículos. A miríade de pedestres, vendedores ambulantes, trabalhadores de financeiras, camelôs, mendigos, aposentados e engravatados divergindo para todos os lados na orquestra caótica dos dias úteis. Independente disso, meu coração estava leve. Quando retornei minha atenção para o ambiente em que estava, peguei o papo no meio:

- Pois é, essa política tá uma vergonha mesmo. O Brasil tá ferrado com estes safados falando esse monte de besteira na televisão.

- A gente sempre escolhe o menos pior – meu pai retrucou. - Ou então vota contra o que a gente não gosta – e riu.

Nesse momento, distraído, o motorista quase atropelou uma senhora que atravessava a rua fora da faixa, completamente distraída, olhando para o chão e alheia à sua quase morte. Freou bem a tempo de se “arrepender”:

- Filha da puta maluca! Devia ter atropelado só para ela aprender a atravessar direito.

- E a corna nem olha! Atravessa olhando para o chão, com cara de “Jesus me chama” – meu pai sempre concorda com a pessoa que está conversando. Em raras exceções, disfarça sua ligeira discordância com bom humor para a pessoa não ficar chateada.

Da minha privilegiada visão do banco de trás ainda pude ver a mulher sumindo na calçada, inalterada e com o mesmo olhar sondando o chão. Praticamente um robô. Mesmo que nada de terrível tenha acontecido, foi o suficiente para mudar o tom da conversa do carro:

- Eu sou motorista de táxi há uns dois anos e já vi cada coisa nessa cidade... Entraram uma vez dois caras no táxi e um com uma arma no colo dizendo: “Dirige”. Daí eu falei: “Peraí cara, como assim, dirige? Se tu quer o carro pode levar, eu desço aqui e vocês seguem, tá tranqüilo”. E o cara: “Que isso, rapaz, nada a ver, pode dirigir aí, esquenta com a arma não”. E eu: “Cara, eu não vou dirigir com você com essa arma aí, pode levar o carro, eu não ligo”. Aí o que tava no banco de trás me mostrou um distintivo de polícia e eu aceitei levar os caras. Mas o papo deles era muito fora da real, os caras só falavam de não-sei-quem pegou não-sei-o-quê para dar para não-sei-quem-lá e dar tiro em não-sei-mais-quem. Muito louco, cara. E, no final, ainda me perguntaram se eu gostaria de fazer mais corridas pra eles e tal. Nem morto.

Mal ele terminou a história, meu pai já tinha uma outra para contar. Porque violência sempre dá mais Ibope?

- Cê já sabe do novo golpe que os caras tão aplicando? Os caras usam uma escada para fingir que estão trabalhando no poste na frente da sua casa como técnicos da companhia de luz e tal e aí esperam o porteiro se aproximar e perguntar se eles querem água. Daí eles aproveitam a oportunidade para entrar no prédio e roubar todo mundo. Foda, né? Nem dá mais pra oferecer água pras pessoas hoje em dia.

Voltei a assistir as janelas laterais para me distrair do assunto. Mesmo assim, acabei ouvindo o taxista:

- Outra. Tava passando pela Presidente Vargas quando um pivete que tinha acabado de assaltar um senhor correu pelo meio da rua e eu “esbarrei” nele com o carro, fazendo-o cair. Heh, carne não amassa o pára-choque. Mas ainda deu para ver pelo retrovisor ele caído, e o senhor pegando a carteira de volta e largando o moleque lá.

Foi só falar em pivetes que eu vi um grupo perto de um portão conversando alguma coisa. Pensei no que faria se estivesse andando à pé por ali, mas não por muito tempo. Dentro de um carro, as coisas passam depressa demais pra pensar. O motorista continuou:

- Um amigo meu do trabalho é que é muito azarado. O cara tinha uma moto. Parado no sinal, domingo, roubaram. Três meses depois, acharam. Ele consertou e vendeu a moto. Comprou um carro. Parou na frente da igreja São Francisco Xavier, quando voltou, cadê o carro? Usou o seguro e comprou um mais barato. Em outro sinal, um garoto passou quebrando uma lanterna dele e quando ele desceu do carro para pegar o moleque, veio um outro por trás, o rendeu e levou o carro.

Paramos no sinal e dois garotos começaram a fazer malabarismos com sujas bolinhas de tênis na frente do carro. Chequei meu coração e ele já não estava mais leve como antes.

- Pô, mas esse teu amigo precisa de um banho de arruda, uma sessão de desobsessão, porque aí também é azar demais – meu pai aproveitou para brincar com a situação. - E os bandidos-aranha? Os caras escalam as marquises lá perto de onde eu moro e invadem as casas, comem a sua comida, vêem televisão até. Teve um cara que até lavou a roupa!

Bati com a cabeça no vidro. De levinho, ninguém percebeu. “Concentre-se em coisas felizes”, pensei para mim mesmo. Não adiantou. Todo aquele papo de poder “se abstrair de conversas no banco de trás” já tinha ido pro saco há muito tempo. Estava completamente contaminado pelo mundo cinzento dos adultos.

Felizmente, minha casa não ficava tão longe assim do centro. Logo chegamos e assim que o carro parou, meu pai pagou a corrida e saiu agradecendo, dirigindo-se ao portão de casa com a chave na mão. Fiz o mesmo, mas, ainda atordoado, bati a porta com mais força do que deveria. O táxi foi embora tão rápido que nem deu tempo de ver se o motorista se irritou.

Subi no elevador calado, enquanto o meu pai assobiava tranqüilo. Abriu a porta, e eu fui direto para o quarto e onde me joguei na cama. Fechei os olhos e era como se os dois hemisférios do meu cérebro metralhassem um ao outro com pensamentos violentos. Abri os olhos, suspirei, minha cabeça pendeu para a esquerda. Só aí, percebi minha cadela dormindo ao meu lado no chão, roncando como sempre. Deitei perto dela e ela acordou, balançando o rabo timidamente. Fazendo carinho nas suas orelhas, expliquei o meu pesar e ela me escutou com atenção. Ao terminar, lambeu o meu nariz um par de vezes e dormiu de novo. Voltei para a cama e fiz o mesmo.

Alguém falou que os cães enxergam em tons de cinza. Se isso for verdade, seus ancestrais devem ter aprendido com seus donos adultos. Eu, embora quase adulto, ainda enxergo as cores. Graças ao meu cão-guia para indeficientes visuais.